Sacanas sem Lei propõe-se a estimular o debate e divulgar ações que valorizem o acesso à cultura, um direito fundamental reconhecido na Declaração Universal de Direitos Humanos. O objetivo do blog é a troca de ideias e a disseminação de conteúdos capazes de ampliar a discussão em torno da democratização do acesso à cultura.
Amarcord é uma das obras-primas do cinema
surrealista italiano. Amado por uns e odiado por outros, é compreensível que
muito do que fora escrito acerca do filme não seja, de todo, consensual. Não
obstante, para os que dão certificado de qualidade indiscutível aos Óscares, este filme foi galardoado em 1975
pela Academia. Realizado por Frederico Fellini em 1973, retrata a vida de uma
pitoresca vila costeira italiana dando enfoque ao perfil cómico de cada uma das
personagens e aos seus sonhos e desejos carnais. Desde o tocador de acordeão
cego, passando pela desejada (hoje "boazona") Gradisca, pela ninfomaníaca Volpina, pelo louco que
grita por uma mulher, pelo padre que tem sonhos anti-convencionais, pelo avô que só
pensa em sexo: todos estes personagens são um hino à arte de retratar as
diferentes vivências e fases da vida, sempre num contexto de exaltação da
comédia dramática. É uma divertida e emocionada visita de Fellini à sua própria infância.
O filme não tem uma linha condutora o que pode aborrecer alguns... A história de Amarcord redunda numa
observação de um conjunto de pequenos episódios de uma vila à luz do seu tempo:
a Itália de Mussolini. Aí consegue ser uma crítica sem perder a sua elevação cómica. É um filme simples com actores genuínos, alguns dos quais
foram seleccionados pelo realizador na rua apenas pela sua aparência. É inevitável fazer-se o
paralelismo de Amarcord com Rimini, terra natal de Fellini. Esta simetria é mais destacada na cena em que a população da vila se reúne
em pequenos barcos para saudar a passagem do navio transatlântico "Rex". Fellini explorou de uma forma genial a paródia dos episódios da vila de Amarcord, tentando sempre reproduzir um conflito cómico de interpretações entre as distintas personagens. O realizador realça tanto um pequeno pormenor da chegada de um pavão colorido que caminha e voa pela neve, como a ideia do contacto de gente simples com as novidades dos turistas que passavam na vila.
Na verdade, penso que existe em cada um de
nós uma passagem de Amarcord. A nossa infância e o mundo de sonhos à volta dela,
ainda hoje, nos dá azo a uma imaginação única que belisca a realidade dramática. Na vila
de Ponte de Lima encontro muita identidade com alguns pequenos trechos de
Amarcord. Cada episódio narrado da vila portuguesa com 890 anos de história contribui, ainda
hoje, para um chamamento da obra de Fellini. Há episódios limianos que aplicados ao surrealismo do realizador dariam um grande filme ao nível de Amarcord. Também da vila mais antiga de
Portugal existem histórias pitorescas aplicadas aos novos tempos. Não há rede
social que substitua o sentimento de um meio pequeno onde cada passo de cada um
é escutado silenciosamente e o quotidiano seja observado como se de um romance histórico
se tratasse.
Mas a parte interessante é que a vida de Amarcord
é uma verdadeira festa do mesmo modo que a vida de Ponte de Lima se aproxima sempre da festa, aquela que faz esquecer as fases mais dramáticas da vida, do ano que passou. De facto, é isso que dá magia e vida a uma vila que hoje peca por não conseguir
fixar a juventude que emigra. Uma geração que fica, tal como Fellini, agarrada eternamente a reminiscências felizes das quais sonham voltar. Da mesma forma, a adolescência representada por Fellini em
Amarcord não iria hoje fixar-se na vila, sendo que, se houvesse uma sequela do filme perder-se-ia a
chama dele como um todo. A juntar aos ingredientes do filme de Fellini, está outra obra-prima de Nino Rota. A banda-sonora de Amarcord é de enorme calibre e consegue transportar ainda mais a ação do filme para o ambiente surrealista de Fellini.
Não façamos um exercício de recordação para a eternidade. Como diria Fernando Pessoa: "Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho". Rimini fugiu a Fellini tal como muita da tradição da vila limiana fugiu aos genuínos. Assim sendo, enfoque no presente. Vamos vivê-lo
esperando sempre pela festa que nos aguarda. Bem-haja Fellini! Bem-haja a esta
Vila! Terra de gente boa, e feliz, Ponte de Lima.
0 comentários:
Postar um comentário